No dia 13 de março do ano 2000, quando tomou posse como desembargador do TJRS, o cidadão e juiz Sejalmo Sebastião de Paula Nery, então com 57 anos de idade, surpreendeu, com seu discurso, três ou quatro centenas de pessoas presentes, que não conheciam detalhes dos bastidores do currículo dele, ex-menino de rua, que começou a trabalhar com cinco anos, juntando lenha nos campos frios de Vacaria. Fora criado desde cedo em patronatos, sem a presença dos pais. “Em 15 anos, devo tê-los visto meia dúzia de vezes, esparsamente” – confessou.
Na ocasião, Sejalmo falou também sobre as reações que viu e ouviu – ainda menino – ao dizer de seu sonho de ser advogado. E quando, 30 anos mais tarde, escutou que seria “impossível ou difícil” sua pretensão de ingressar na magistratura.
Ontem (8), Sejalmo – alcançado pela compulsória (70 de idade) – fez sua despedida da 14ª Câmara Cível, onde foi presidente por mais de oito anos. Pouco antes, ele recebeu em seu gabinete o Espaço Vital. A conversa foi longa; o papo fácil verteria longas páginas de Internet. O editor pinçou algumas das perguntas e respostas mais interessantes.
Espaço Vital – Agora, doze anos e meio depois, o que mudou em sua vida?
Sejalmo de Paula Nery – Aprendi muito, consegui entender mais as pessoas; ser mais humano, compreensivo e semear melhor o direito e a justiça. Lançar alguma luz onde houvesse trevas, levar um pouco de amor, compreensão e fé onde verificava existência de ódio, desavença e desesperança; enfim melhorar o entendimento e compreensão entre os humanos, nosso irmãos, em Cristo. Também levar um pouco de alegria e esperança onde houvesse tristeza e desesperança. Procurei me aprimorar – e acredito que, em parte, consegui.
EV – De sua carreira de operador do Direito, algum fato marcante?
Sejalmo – O mais marcante, ainda que relacionado com o Direito, vem da minha infância e também teve desdobramentos 30 anos depois. Num internato agrícola, no interior gaúcho, aos nove ou dez anos de idade, fiz uma redação estimulada, escrevendo que pretendia ser advogado. Quando a professora leu, em voz alta, o meu texto, ele foi motivo de risada de todos. A pretensão do garoto pobre foi considerada absurda. Talvez tenha ficado envergonhado, mas segui em frente. Quase o mesmo ocorreu quando eu já estava por concluir Direito, na Unisinos, em 1971. Eu revelei, no meu círculo de relações, que queria ser juiz e não faltaram colegas e professores que disseram que a minha pretensão era muito difícil ou impossível.
EV – Sua carreira na magistratura foi longa, são 32 anos. Por que o senhor demorou mais do que o habitual para chegar ao TJRS como desembargador, há 12 anos?
Sejalmo – Depois de ser apanhador de lenha, consegui estudar e aos 18 de idade comecei a lecionar aos que sabiam pouco ou nada. Com 30 de idade eu já era vereador em São Leopoldo, chegando a presidente da Câmara Municipal em 1975. Na magistratura, nunca me importei com a forma de promoção: ela sempre foi por antiguidade – que é um dos critérios legais. Os que tinham o poder decisório deixaram de lado questões subjetivas, como o merecimento. Eu me formei advogado em 1971, mas só consegui ser aprovado como pretor, nove anos depois. Mas os revezes sempre serviram para que eu abrisse os olhos e percebesse que as coisas boas estão dentro de nós.
EV – Como foi a sua infância de menino negro?
Sejalmo – Foi muito difícil e penosa. Houve um acidente doméstico – um incêndio – que sofri aos dez meses de idade, quando me encontrava sozinho em casa. Também passei muito frio e fome; e desde os cinco anos de idade tive que trabalhar para ajudar a sustentar minhas irmãs e minha mãe, todas já falecidas. Ficaram marcas indeléveis e irreparáveis até hoje, mas não impediram que eu lutasse e vencesse muitos combates. Não tenho recalques destes fatos, embora tenham sido muito difíceis para superar.
EV – A propósito, como o senhor analisa o desempenho oficial no trato dos menores abandonados?
Sejalmo – Acredito que a educação, o atendimento e o trato aos menores abandonados e em situação de risco no Rio Grande do Sul e no Brasil é muito precário e objeto de descaso pelas autoridades e até mesmo pelos pais. É necessário melhorar muito para tentar reduzir a crescente violência e a criminalidade. É indispensável muita vontade e força política, e não é só isso.
EV – Alguns obstáculos em sua carreira na magistratura foram em decorrência de o senhor ser negro, ter sido pobre e menino de rua?
Sejalmo – Como disse, a minha vida e a minha carreira sempre foram repletas de obstáculos. Deixo, de propósito, para os ´justos´ analisarem as verdadeiras causas dos obstáculos. Não me queixo de nada. A providência divina, sem dúvida, deu-me mais do que eu merecia. Todos os cargos que exerci na função pública, alcancei-os por concurso público e/ou por eleições populares, desde auxiliar de disciplina, professor primário, secundário e vereador. Nada recebi de graça. Desde fevereiro de 1961 sempre estive efetivo na função pública; se tive alguma falta foi por enfermidade invencível e momentânea.
EV – No seu discurso de posse, em 2000, o senhor destacou a esposa como partícipe parelha nessa cruzada. O amor é lindo!
Sejalmo – São cerca de 50 anos de vida em comum, entre namoro, noivado e casamento. Elenita sempre esteve ao meu lado: ontem cuidando e se dedicando inteiramente aos filhos e, hoje, aos netos – com o mesmo vigor e carinho. Talvez, como qualquer pessoa, ela possa ter algum defeito, mas nunca descobri até hoje.
EV – Definitivamente, o racismo está vencido?
Sejalmo – Definitivamente, o racismo não está vencido. Está um pouco abrandado e dissimulado pelos novos tempos, muitas lutas e novas ideias, mas enquanto o homem existir sobre a terra sempre haverá o racismo – é um câncer que está impregnado na humanidade. Não adianta simplesmente negar e/ou fingir que não existe; ele está presente aqui e em todos os rincões deste mundo.
EV – Esta semana, o país mais poderoso do mundo reelegeu um negro como seu presidente. Como o senhor vê o resultado da eleição?
Sejalmo – O negro está cada vez mais se esforçando e vencendo pela cultura e não pela força bruta. Somente a afirmação da singularidade do homem de cor e a luta apaixonada por democracia, igualdade de oportunidades e liberdade poderão desmascarar e derrotar o monstro anacrônico e ridículo, ainda existente, mas felizmente em decréscimo, que se chama racismo. Como a vida não é apenas para ser vivida, mas para ser sonhada, eu estou em luta permanente contra as dificuldades, barreiras reais e invisíveis e descrença. Empenho-me pela aplicação do direito, da justiça, da liberdade e da igualdade. Eu estou sonhando com as melhorias e também fiz e sigo fazendo a minha parte!
EV – O senhor se inspirou em algumas coisas de Martim Luther King?
Sejalmo – Muitas de minhas atitudes e palavras foram inspiradas na doutrina e pregação de Jesus Cristo, Martin Luther King, Mahatma Gandhi e Rui Barbosa, e tenho absoluta convicção de que suas mortes não foram em vão e continuam, ainda hoje, impulsionando a humanidade. Ao meu ver, a própria reeleição de Barack Obama é, de certa forma, fruto das lutas de Martin Luther King e outros heróis anônimos.
EV – Oportunamente, o senhor vai reingressar na Advocacia?
Sejalmo – Ainda não sei o que farei. Porém, é certo que não vou parar com tudo. O futuro me dirá o que fazer. Há muitas portas e janelas abertas. Saio da magistratura silenciosamente como entrei. Sem mágoas e nem inimigos. Aos amigos deixo um grande abraço e minha mensagem de muita saudade.
Espaço Vital